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Foto do escritorAristides Barros

O ano em que não morremos

Nós vimos a morte de perto e de longe, dos lados, pela frente e aos fundos, mas a vida insistiu em existir, veio em gotas e a vontade era de tomar um porre, várias overdoses.


Aristides Barros / Foto Bruno Arib


Era um dia normal, não chovia e nem fazia sol. Foi assim que sem mais nem menos os medos vieram e começaram a bater na porta. As pessoas iam se distanciando, já não se via mais ninguém.


Os que já habitavam nos seus “mundinhos” se trancaram de vez. A vida aberta aos poucos ia se fechando, perdia o rumo. A liberdade dá sentido a ela e sem isso desfalecemos, encarcerados nas coisas que nos prendem ao ego. Olho muita gente livre, à toa, que vive presa em si.


Todos distanciados se preocupavam com quem estava longe, porque a morte, como nunca havia acontecido antes, esteve sempre muito próxima, presente. Ficou tão rotineira no nosso dia a dia que praticamente virou parte das famílias, que devastava.


Na sua surdez, Beethoven ouviu ela bater três vezes na porta e Jesus a venceu no terceiro dia. De alguma forma tentamos uma vitória sobre a inseparável companheira da vida.


O meu amigo morreu e os amigos dele foram morrendo um a um, às vezes dois, três, mas… morreram todos.


Não eram heróis, só eram nossos amigos. Ironicamente, lembrei da canção do Cazuza e deles todos que morreram sem tomar nenhuma dose. Game over!


Fomos jogando eles nas covas sem despedidas, sem adeus. Tudo às pressas, como se tivessem cometido tanto mal que não merecessem sequer um segundo a mais acima da terra. Jovens e idosos, homens e mulheres; vidas novas e velhas foram guardadas para nunca mais serem usadas.


A dor da perda se compara a abrir o peito com as próprias mãos e jogar uma bomba lá dentro, por fora fica tudo intacto e a gente vai implodindo todos os dias, andando aos pedaços, completamente devastados, se decompondo e recompondo, porque viver é preciso.


Para contar o que passamos, o quanto sofremos, o medo que sentimos.

Às vezes nos sentimos culpados pelo pouco, ou nada, que fizemos para impedir que fossem levados.


O grande vazio que nos separa deles é aprofundado pela indagação de que se errarmos novamente, então, quantos erros, mortos e feridos, ainda serão necessários e permitidos para aprendermos a evitar o aumento do número de espíritos, que esperam fazer justiça no Vale Sagrado da Morte, como li em uma história indígena.

Tupã! aumente nossa coragem e nos fortaleça para combatermos aqueles que querem nos sucumbir.


É preciso sempre lembrar para não esquecer nunca mais. Tentar não cometer os mesmos erros nunca mais. Lembrar para não esquecer. Gosto dessa frase que traz o gosto de revolta de um tempo que nos fez tão mortais e distantes um do outro.


Semelhante a agora, da doença desses dias terríveis, naquela época uma enfermidade também se resumia em morte, em portas trancadas, amigos e famílias separadas, sonhos e vidas interrompidas. Jovens e idosos, homens e mulheres, vidas novas e velhas, que desapareciam para nunca mais serem encontradas.


Incrível! Igual a hoje, aqueles, daquela época, negavam a vida, se ocupavam de mentir, matar e destruir. Tristes semelhanças. Ironicamente, lembrei de novo da canção do Cazuza “meus inimigos estão no poder”.


São tempos sombrios esses rebuscados da Idade Média, trouxeram com eles a versão da peste bubônica para ilustrar pior o quadro de obscurantismo do mundo caótico conduzido pelo retrocesso.


Os ratos continuam ocupando espaços importantes. Nas suas importâncias não existe compaixão, respeito, misericórdia, amor à vida, e nem por nada que a dignifique. Aniquilam tudo, roem e corroem todas as suas estruturas, pragas de gafanhotos a fazer uma péssima colheita na plantação.


Um só homem é capaz de destruir milhões de pessoas com o que saindo de suas tripas chega à boca e ao arrotar encontra abrigo em mentes ruminantes tão podres e imundas quanto a sua.

Nós vimos a morte de perto e de longe, dos lados, pela frente e aos fundos, mas a vida insistiu em existir, veio em gotas e a vontade era de tomar um porre, várias overdoses. Exagerado! Êh! Cazuza.


Fazer um rock ensurdecedor após ouvir as três batidas que levaram Beethoven à quinta sinfonia e enlouquecidamente gritar a todos que levantem e andem com os braços prontos para tomar o “pico” mais vivificante do mundo, que os que partiram tomariam e ficariam um pouco mais, mas não tiveram tempo.


Na carne, a dor leve da agulha teve a sensação de vingança líquida entrando na veia. A melhor vingança é viver porque os algozes assassinos morrem com isso, sentem-se impotentes, vencidos e derrotados, quando não conseguem êxito em matar.


Foi um momento de solidão repleto da presença das pessoas desconhecidas, todas elas mortas.


Mas, agora estão alegres porque a vida recebeu injeção de ânimo contra os filhos e filhas das putas e dos putos que não as livraram do mal.


Da janela de casa, olhando para o céu, a Rafinha disse que o sol ia sair para levar o "vírus covid" embora e a gente ia poder sair para passear. Ela não é profetisa, é só uma criança de três anos, e as crianças sabem mais coisas do que os adultos, conseguem ser felizes dentro do caos.


A felicidade é igual a uma bomba de mil megatons que te explode em mil bolinhas transparentes e coloridas. e você ri à toa. Livre, dança nas nuvens com a garota mais bonita de outros planetas. Lucy in the sky with diamonds.


O mal ainda não passou, as pessoas continuam morrendo e vão continuar a morrer, porque a vida não se separa da morte.


Mas, quando separamos os imbecis da vida até a morte se alegra porque ela chega cumprindo o seu e o nosso destino, não a imposição de tiranos, monstros e covardes, que também são arrancados do mundo num piscar de olhos. Porém, antes um aborto a eles para que não viessem e vissem a luz do dia, que ofuscam com a treva.


Quando tudo acabar, o sol vai brilhar como nunca antes havia brilhado, você vai ver.


(*) Escrito em Novembro de 2021


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